Aos 35 anos, Constituição tem mais de 160 dispositivos não regulamentados Fonte: Agência Senado
Trata-se de determinações genéricas para as quais a própria Constituição pede leis disciplinadoras, contendo todo o detalhamento necessário, a serem aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo presidente da República.
Um exemplo é o imposto sobre grandes fortunas. Previsto pelos deputados e senadores constituintes em 1988, o tributo não existe até hoje porque o artigo 153, que trata explicitamente do tema, não foi disciplinado.
Em situação parecida está a greve no funcionalismo público, prevista no artigo 37 da Constituição. Enquanto esse dispositivo não ganhar limites legais, os servidores federais, estaduais e municipais continuarão proibidos de cruzar os braços por melhores condições de trabalho.
Os dispositivos que precisam de regulamentação podem ser identificados com facilidade no meio da Constituição. São artigos que enunciam um direito, um dever ou uma regra com a ressalva de que eles serão cumpridos “na forma da lei” ou “nos termos definidos em lei”.
Para a maior parte dos que ainda estão pendentes, existem projetos de lei em estudo no Senado e na Câmara dos Deputados.
Na visão da consultora legislativa Manuella Nonô, que atua na Câmara dos Deputados na área de direito constitucional, os exemplos acima são excepcionais. Segundo ela, hoje existem poucos os dispositivos da Constituição que realmente provocam prejuízos à sociedade por falta de regulamentação:
— É claro que o ideal seria que tudo já estivesse regulamentado. Apesar de não estar, eu não vejo hoje um grande déficit de regulamentação.
Nonô cita o artigo que diz que cabe ao Senado sabatinar os indicados a instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF), a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Banco Central, além de “titulares de outros cargos que a lei determinar”. Este último trecho não está disciplinado, mas, de acordo com ela, não faz falta.
— De todos aqueles 163 dispositivos que até agora não foram regulamentados, eu diria que no máximo dez realmente precisam de regulamentação — diz.
De acordo com a consultora da Câmara, muitos dispositivos são postos em prática mesmo sem a regulamentação pedida pela Constituição. O impeachment de presidente da República e a aposentadoria compulsória dos servidores públicos, por exemplo, baseiam-se em leis anteriores a 1988.
— De tudo aquilo que é importante, a maior parte já foi regulamentada. Eu vejo como um silêncio eloquente do Congresso aqueles poucos dispositivos que os parlamentares não disciplinaram — avalia ela.
O consultor legislativo do Senado Arlindo Fernandes de Oliveira, que também atua na área de direito constitucional, concorda com a tese do “silêncio eloquente”. Segundo ele, a não votação de qualquer projeto de lei, incluindo os que regulamentam a Constituição, é resultado de escolha política:
— Não votar determinado projeto de lei não é necessariamente uma omissão. Muitas vezes é uma ação político-legislativa.
Fernandes de Oliveira cita o caso da criação de municípios. Logo após a promulgação da Constituição, que mudou as regras vigentes até então, houve uma explosão de novos municípios pelo Brasil afora. Os parlamentares endureceram as exigências em 1996, por meio de uma emenda constitucional. As novas exigências ainda não ganharam a lei regulamentadora.
— Quando não votam um projeto que detalha as regras para novos municípios, os parlamentares estão, na prática, decidindo barrar a criação de municípios — resume.
Outro caso de “silêncio eloquente” se refere ao vice-presidente da República. O artigo 79 da Constituição diz que ele, além de eventualmente substituir o presidente, terá uma série de atribuições. Como a regulamentação não foi feita, não se sabem quais atribuições seriam essas.
O consultor do Senado afirma que, quando direitos fundamentais não podem ser exercidos em razão da falta de regulamentação, os grupos sociais afetados podem recorrer à Justiça.
Isso ocorreu em 2011. Após o STF anunciar que fixaria regras para que o tempo de aviso prévio a ser cumprido pelo trabalhador fosse proporcional ao tempo de serviço, conforme previsto na Constituição, o Congresso Nacional aprovou um projeto de lei que disciplinou esse dispositivo constitucional.
A maioria das determinações da Constituição, que foi promulgada em 5 de outubro de 1988 numa cerimônia conduzida pelo deputado Ulysses Guimarães, é autoaplicável. Outras, contudo, precisam ser detalhadas por leis disciplinadoras.
Segundo o levantamento da Câmara, a Constituição nasceu com mais de 400 dispositivos passíveis de regulamentação. De lá para cá, em torno de 270 (dois terços do total) ganharam a respectiva lei.
Muitos artigos foram regulamentados rapidamente, como o que criou o Sistema Único de Saúde (SUS) e o que estabeleceu o Código de Defesa do Consumidor, ambos em 1990.
Outros foram disciplinados mais recentemente, entre os quais o que garante direitos trabalhistas aos empregados domésticos, em 2015, e o que trata do crime de terrorismo, em 2016.
De acordo com o professor de direito constitucional Dimitri Dimoulis, da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) de São Paulo, a necessidade de regulamentação é algo inerente às Constituições, já que, para terem vida longa, precisam estabelecer princípios abrangentes, e não regras minuciosas:
— A Constituição do Brasil é uma das mais extensas do mundo. Se entrasse nos detalhes para dispensar as leis de regulamentação, ela se transformaria num código com milhares de páginas. Ao mesmo tempo, ficaria difícil modificar qualquer um desses detalhes, já que a aprovação de emenda constitucional exige mais votos dos parlamentares do que a aprovação de projeto de lei. O engessamento seria maior.
Além disso, segundo Dimoulis, a regulamentação futura foi uma solução que a Assembleia Nacional Constituinte encontrou para temas polêmicos a respeito dos quais não se conseguiu fechar acordo em 1988:
— A expectativa da Constituinte era que, no futuro, num momento histórico e político diferente, os parlamentares conseguissem chegar ao entendimento e aprovar as leis regulamentadoras.
Um caso claro de preocupação com o futuro está no trecho do artigo sétimo da Constituição que prevê que os trabalhadores rurais e urbanos receberão “proteção em face da automação”.
Os constituintes vislumbraram que a tecnologia, ainda incipiente em 1988, viria para ficar e ceifaria muitos postos de trabalho. Por essa razão, acharam melhor deixar a lei regulamentadora para quando a realidade chegasse. Até este momento, o dispositivo não foi regulamentado.
Mesmo dispositivos mais recentes, que entraram na Constituição por meio de emendas, carecem de regulamentação. É o caso da expropriação (sem indenização) de imóveis rurais e urbanos onde for encontrado trabalho escravo, incluída no texto constitucional em 2014. Tais imóveis, contudo, ainda não são destinados à reforma agrária e programas de habitação popular porque falta a respectiva lei.
O professor da FGV diz que um dos problemas da falta de regulamentação de determinados dispositivos é a judicialização. Ele menciona o caso dos servidores públicos, que, não podendo fazer greves propriamente ditas, recorrem a paralisações do tipo “operação padrão” e “operação tartaruga”, que por vezes acabam sendo questionadas nos tribunais.
Dimoulis, porém, ressalva:
— Não adianta fazer qualquer coisa. Leis malfeitas e vagas não resolvem o problema. A qualidade legislativa é essencial. Antes de serem aprovadas, as leis precisam ser discutidas, considerar as experiências internacionais e ter o seu impacto concreto avaliado. As leis não podem ser um fetiche.
O professor Elival Ramos, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), concorda com a avaliação de que agora restam na Constituição poucos dispositivos que realmente precisam de leis:
— A Constituição Federal já foi completada na maior parte daquilo que era necessário. Isso foi feito principalmente logo nos primeiros anos de vigência. Em geral, se existem pontos que até hoje não receberam o desdobramento com a edição de leis, é porque eles simplesmente não precisam dessas leis para funcionar.
Ramos entende que, quando se anuncia que, passados 35 anos da promulgação da Constituição, ainda existem 163 dispositivos que os parlamentares não regulamentaram, transmite-se a mensagem de que o Congresso Nacional não quer trabalhar, não tem visão jurídica ou não está preocupado com os problemas do país.
— Essa é uma imagem simplória e equivocada — diz o professor da USP. — A não votação de determinados projetos é uma decisão política em alguns casos, mas em outros vem da falta de acordo político. Este último caso decorre da excessiva fragmentação partidária no Congresso. É praticamente impossível que o Poder Executivo governe havendo cerca de 20 partidos no Poder Legislativo. A fragmentação dificulta e até impede que acordos sejam fechados e projetos sejam aprovados. Deveríamos ter no máximo seis ou sete partidos.
O fato de o Congresso Nacional não aprovar determinados projetos faz o STF agir como se legislasse sobre esses temas, o que, segundo Ramos, não é bom para a democracia:
— É como se, num jogo de futebol em que os times não finalizam, o juiz decidisse pegar a bola e chutar para o gol. O STF não tem competência para criar leis, como vem fazendo com avidez nos últimos anos. Essa competência é do Congresso Nacional, que é uma instituição política e representativa. Se o Congresso hoje enfrenta dificuldades por causa da fragmentação partidária, não é transferindo o poder decisório para o STF que o problema vai ser resolvido. É o sistema político-eleitoral que precisa ser modificado.
Fonte: Agência Senado